Os turistas que passam, talvez não entendam ou não tenham tempo para entender. Os moradores já não se importam, pois sabem que aquele homem não faz mal algum. Enquanto todos caminham, fotografam, pedalam, Narciso vê apenas os reflexos na água da Lagoa, tal sombras platônicas redimidas. Detêm-se naquele rosto recriado pela Rodrigo de Freitas e se contempla de manhã à noite, quando o sono chega e o faz sonhar seu reflexo de água.
Seu rosto é o rosto do Cristo Redentor negro, seu corpo gigante escala a pedra da Gávea em posse de uma turista loira e de seios grandes, ele é um King Kong. Urra até despertar com o próprio urro. Recomeça o dia ajoelhado sobre um deque da lagoa. Os turistas contemplam a paisagem. Narciso contempla as imagens da Lagoa, seu rosto entrecortado por uma garrafa pet, seus olhos mesclados a sacos plásticos, seu cabelo espuma branca, sobre sua boca um peixe morto. Narciso quer mordê-lo: aproxima-se do reflexo a ponto de tocar o nariz no espelho d’água, submerge o rosto para abocanhar o peixe. Desequilibra-se. Narciso mergulha no reflexo, o reflexo acolhe Narciso. Parte a parte encontra-se o corpo: primeiro a cabeça, ao final, os pés. Mesclam-se numa figura única sob as águas sujas e calmas da Lagoa Rodrigo de Freitas.
Antunes
Ilustração: Rogerio
Rio de Janeiro, 5 de março de 2011