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O milagre do Fred Astaire do sertão

Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré etc.”
(Machado de Assis, Dom Casmurro)

Raimundinho Dó Ré é figura marcada em São Cristóvão. Sujeito dançante. Vive se requebrando pela Quinta da Boa Vista, pelo Largo da Cancela, por São Januário e, principalmente, pela Feira dos Paraíbas. Os seguranças já o conhecem. Entra pela saída, de graça, não precisa deixar a moedinha de um Real. E justificam: “este é amigo do Luiz Gonzaga.” E se alguém resolve argumentar que o Luiz Gonzaga já morreu, eles explicam: “Você não entendeu, ele é amigo da estátua do Luiz Gonzaga. Ficam ali no maior papo.” Raimundinho vai pelos corredores da Feira, cumprimentando a Deus e ao mundo, dando bom dia ainda que de noite, dando boa noite ainda que de dia e todo mundo retribui. Passa na barraca dos doces e cata um quebra-queixo pra chupar na boca banguela. Pelo caminho, cata pedacinhos de carne-de-sol no prato alheio, dá golada num Guaraná Jesus, troca passos com as moças, com as senhoras, com uma brisa besta qualquer. Até que chega diante do palco.

Alguns cantores e algumas bandas já conhecem o cabra. Espertos, chamam-lhe pro tablado e garantem o espetáculo. Outros, menos experientes ou mais vaidosos, deixam Raimundinho de lado, aí é fatal, pois o sujeito, bom como é, rouba a cena. A última vez que fui, presenciei fato assim. O nordestino chegou já dançando com as pernas moles pela música e pela birita, trazia sua pochete atravessada no corpo por cima do blusão largo e, cobrindo a calvície, estava o tradicional chapeuzinho. A banda tentou chamar mais atenção, a cantora balançava os glúteos, cantava música lenta, cantava música rápida e só dava Raimundinho. Abriu-se uma clareira imensa ao redor do homem e os que puderam, sacaram suas máquinas fotográficas e filmadoras pra registrar o Fred Astaire nordestino. Cansados de disputar, os membros da banda boicotaram o show e desligaram os instrumentos. Ele, nem aí, continuou a dançar ao som do silêncio, deixando os músicos boquiabertos a assistir do tablado. Foi assim, tal um Padim Ciço, que Raimundinho fez o milagre da transformação do palco em público e do público em palco.

Antunes
Rio de Janeiro, 14 de abril de 2010

Raimundinho Dó Ré dando show na Feira dos Paraíbas. Repare o pessoal ao redor filmando e fotografando.