“Eram carapinas do mínimo e do nada, os devoradores das horas, insaciáveis Saturnos.”
(Autran Dourado, Os mínimos carapinas do nada)
Se não ficou claro nestas primeiras palavras do Autran, eu mesmo explico e depois o evoco novamente pra arrematar, caro leitor: carapinas do nada são aqueles artistas manuais que ficam horas e horas a esculpir uma matéria prima, até convertê-la em coisa que tenha valor nenhum. Dividamos a expressão: carapinas são os que talham madeira e nada é nada mesmo, essa coisa nenhuma. Novamente Autran, agora em entrevista à Folha: “São os velhos que ficavam na janela de casa, esculpindo, tirando pequenas aparas de madeira, fazendo caracóis. Procurando o nada.”
Lembrei de Ouro Preto ao ler o texto e ao ler Ouro Preto lembrei do texto. Afinal, o que é a arte Barroca (e a maioria das outras também) senão montão de nada trabalhado por tempos e tempos? Que raio de utilidade tem um anjinho com bunda de fora? Quanto vale os olhares duma santa? E as barbas dum santo que nem sei o nome, têm valor?
Dois carapinas do nada, graças a esse montão de coisa nenhuma, ficaram famosos e entraram pra história, que é esse monte de nada também: Antônio Francisco Lisboa (o Aleijadinho) e Manuel da Costa Ataíde (o mestre Ataíde). Posso, inclusive, baseado na obra de Autran, encaixá-los na terceira categoria de carapinas:
“E agora se apresenta a pura, a sublime, a extraordinária terceira categoria. Só aos seus membros, peripatética academia, se podia aplicar estes qualificativos: divinos e luminosos, aristocráticos artífices do absurdo. Eram como poetas puros, narradores perfeitos, cepilhando e polindo as vazias estruturas do nada.” (Autran Dourado, Os mínimos carapinas do nada)
Por Ouro Preto é fácil achar todas as categorias de carapinas: os que inventaram anjos, pintam igrejas, esculpem pedras sabão, fazem artesanato qualquer ao ponto de uma colher deixar de ser um item útil e se tornar um item de beleza. E é com essas obras que são nada que se enfeitam as igrejas. Deve Deus gostar bastante do nada. E não foi Deus que fez o homem, esse montão de coisa alguma, não seria ele então um grande carapina do nada? Está entendido.
Antunes
Rio de Janeiro, 23 de setembro de 2010
No meio do nada
Aleijadinho, um carapina do nada
Quando a pedra sabão vira monte de nada, feira de pedra sabão diante da igreja de São José